Se eu não puser pra fora, eu explodo
Um desabafo curtido por quase 44 anos em tonéis de raiva.
Olá, como vão?
Semana do meu aniversário, estava aqui concluindo que este ano não quero fazer comemoração, nem ir pra São Paulo, nem me dar algum presente que não posso pagar. Decidi planejar uma ida à cachoeira de uma cidade próxima, com alguns amigos. Saí no último sábado, foi ótimo, estou satisfeita com minha vida social, então vou fazer outra coisa que gosto bastante:💫entrar em comunhão com a natureza.💫
Engraçado eu falar disso na abertura de uma edição que é pura bile.
À newsletter:
A última semana me deixou com uma parte do cérebro reservada a remoer o acontecido. Se você não é cronicamente online ou mora afastado da sociedade (sorte a sua), o acontecido é relatado aqui, e é tudo o que você “precisa” “saber”. Porque no fundo você não precisa saber de nada.
Não cabe a mim comentar, espezinhar, destrinchar o assunto em específico, ele não é meu. A dor pode ser universal, mas, nesse caso, fazê-lo me soa como se me levantasse da plateia durante o espetáculo, tomasse o microfone da mão do apresentador e pedisse licença para cantar a canção de meu povo.
O que posso, no entanto, é contar — na minha própria newsletter — como isso ressoou em mim, e os demônios que despertou.
“Gatilho”: palavra que ouvi pela primeira vez, nesse contexto, durante uma consulta com meu professor de psicologia da faculdade. Ele atendia alunos gratuitamente e eu andava bem perdida em relação a algumas questões. Dizia ele que uma situação na minha vida foi um gatilho para me atentar a outra que vivia concomitantemente, e fez todo sentido. Hoje, a palavra espalhou e tudo é gatilho. (Outro dia tava paquerando um cara e falei que já voltava, ia tomar um banho, e ele respondeu: “gatilho”.)
Com tudo a que fomos expostos nesse caso, foi impossível não reviver maus tratos, injustiças, quebras de confiança e eventos que garantem a tal da cicatriz do trauma. Mas foi lendo a coluna/assistindo ao Reel que a jornalista Milly Lacombe publicou que me dei conta do ponto mais importante em tudo o que senti: a minha raiva.
Das inúmeras pequenas coisas pela quais eu já passei, você já passou, sua mãe já passou etc., sinto que todas elas foram se acumulando dentro de mim, porque nem sempre eu soube/pude/consegui dar vazão. Embora muitas vezes minúsculas, essas situações ocupam um certo espaço, apodrecem e criam volume, dificultando a mim guardar também os tratos excepcionalmente bons, as justiças, as afirmações de confiança e declarações de fé.
Vou usar esta edição pra me livrar dessa raiva. Leitoras são convidadas a fazer o mesmo nos comentários; vomitem! Precisamos deixar essa raiva sair para poder reagir e seguir em frente.
Eu sinto raiva porque:
Das vezes que precisei ser assertiva, tive que ouvir de volta “não precisa perder a calma!” E, quando perdi a calma, era muito histérica e devia procurar ajuda médica.
Tive chefes homens que tentaram tirar vantagem de mim, física e intelectualmente, e que me demitiram quando me defendi.
Formou-se um conclave familiar para decidir se eu podia comprar um tênis preto com 14 anos — coisa de menino. Decidiu-se que sim.
Formou-se um conclave familiar para decidir se eu podia assistir a uma final de campeonato em estádio. Decidiu-se que não.
Era instruída a não me aproximar de certos adultos quando criança, pois não eram confiáveis, ao invés de vê-los sendo confrontados por suas ações.
Tentaram me tomar por burrinha, bobinha mais vezes do que eu gostaria de reconhecer.
Vivi muitas situações onde a única diferença entre eu não poder fazer alguma coisa e um homem poder era o meu gênero — nenhuma envolvia os genitais.
Transaram comigo enquanto eu dormia.
Cobraram de mim um relacionamento aberto unilateral.
Tive que ser a pessoa que segura a onda nos chiliques que os homens davam, a maioria das vezes por motivos ínfimos.
Viram na minha bissexualidade uma obrigação de fornecer sexo grupal.
Dobraram a dose do meu analgésico sem eu saber, pra que dormisse mais rápido e “parasse de reclamar”.
Queriam controlar minha alimentação.
Levantaram meu vestido no meio da rua, sob alegação de “o que é bonito é pra se mostrar”.
Ordenaram que eu voltasse para casa dirigindo de madrugada, bêbada e sozinha, para me “punir”.
Não satisfeito em abusar sexualmente de mim, ele também tentou manchar minha reputação na cidade e me agredir. E até hoje ainda sinto um constrangimento quando quero desabafar sobre a perseguição que esse cara seguiu praticando por anos. A raiva que eu tenho desse caso em particular chega a ser violenta.
Para encerrar, esta aqui não é uma declaração de guerra contra o gênero masculino, heteropessimismo, nem algo do tipo. É um pedido de consideração, um “vamos botar a mão na consciência” em forma de súplica, porque acessar essa raiva é dolorido e cansativo. Disso tudo, alguma coisa precisa mudar.
Meu nome é Bia Bonduki, e eu sou escritora. Quer dizer, eu sou meio pau pra toda obra, mas em 2022 eu lancei meu primeiro livro, Até contentar o coração, e usei desta newsletter para fazer as atualizações do processo, junto com outras incursões que fazia no passado – delivery de pratos árabes, meus textos no Medium e o podcast Eu Tive Um Sonho. Agora, por aqui, falo da vida em geral, das coisas que tomam espaço na minha cabeça e me mantêm acordada por mais tempo, além de fazer recomendações de coisas que li/ouvi/assisti/conheci.
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- quando dizem "não vou explicar isso, isso é matéria de um curso que você já fez, você deveria saber". Se estou perguntando é porque não sei! Quem é você para colocar todo o meu aprendizado numa escala linear e dizer que eu não posso ter dúvidas de coisas mais simples?
- meu ex marido fazia chantagens financeiras; se estava tudo bem entre nós, ele me transferia o dinheiro mensal para manutenção das contas de casa normalmente; se estávamos em crise, ele diminuía o valor, ou atrasava (!!!) ... e quando penso que fiquei 8 anos nessa...
- quando eu soube de uma traição, ele estava na estrada. eu tive o estômago de esperar ele chegar no destino para vociferar sobre, pois tinha medo que ele pudesse causar um acidente de trânsito(!!)
- eu não gostava das sextas-feiras porque ele chegava.
- hoje em dia, depois de divorciada do estrupício, (que me traiu) (que a família sabe) (que é pai ausente) , familiares o tratam com afeição e simpatia.
- meu pai e dois irmãos possuem um grupo de WhatsApp só entre eles (normal). Poreeeeeem, se aconselham e decidem sobre coisas importantes familiares. A filha mulher, não interessa o que pensa.
- eu não pude cursar nem a minha primeira, nem a segunda opção de faculdade (1- moda 2-arquitetura) por motivos financeiros porém por motivos também morais, de discursos como "isso não dá futuro" "engano seu que é um bom curso a se fazer". quando, meio sem opções, fui para o curso que me proporcionava ser professora, aí a família aprovou.
- um dia comum na minha adolescência eu ouvi do meu pai que eu tinha que fazer três coisas: não mais pintar meu cabelo de vermelho, estar em casa no máximo as 10 horas em fim de semana e terminar com um namorado DJ.
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