Carrego comigo algumas histórias curtas de coisas que vivi e nunca consegui entender. Elas não têm um ápice, não são narrativas complexas com pivôs e reviravoltas… Pensando bem, são até meio sem graça — mas são aterrorizantes pela proximidade do perigo, ou por não terem uma explicação baseada em fatos. Por isso, vagam como espíritos no purgatório da minha memória.
Quem sabe contá-las aqui as ajude a “subir” de uma vez.
Diego no armário
Brincadeira de esconde-esconde na casa da prima, um terreno enorme com uma miríade de possibilidades para desaparecer da vista alheia. A regra mandava “bater cara” na parede externa de tijolinhos e torcer pelo milagre da onipresença caso se quisesse encontrar todas as crianças antes delas chegarem ao pique. Na minha vez, decidi começar a procura de dentro da residência, para então expandir o campo. Entrei no quarto da prima mais velha, olhei atrás da porta, embaixo das camas, nada. Abri um armário só para constar, certa de que ninguém estaria ali.
Diego era um menino franzino, barrigudo, de dentes-de-leite carcomidos pelas cáries. Minha mãe dizia que se eu comesse porcaria iria ficar igual a ele. Dentro do armário, ele repousava encolhido, com a cabeça tombada para o lado e de olhos fechados. Os braços finos estavam erguidos na altura do peito, as mãozinhas tortas; era como se ele tivesse sido morto e jogado ali. Parecia mesmo um cadáver, não se mexeu nem quando gritei que ele estava pego.
Corri para o pique para anunciar minha descoberta e fui surpreendida pelo mesmo Diego já encostado na parede de fora da casa, respiração normalizada, semblante calmo. Mais um pouco e polia as unhas na camiseta. Quem era aquela criança abarrotada dentro do armário? Ele se teletransportou para o pique? Nem se Diego dispusesse de velocidade supersônica seria possível chegar tão rápido ali, não havia nem um atalho para tal.
Gosto de pensar que o Diego do armário talvez fosse uma aparição espiritual não-premonitória, porque o original segue vivo, olhei no Facebook. Casado, com filhos, dentes permanentes amarrados por aparelho odontológico. Continua apolíneo.
Garotas selvagens
Férias escolares de julho de 1998, o Brasil disputava a Copa do Amarelou na França. Faz calor na mansão dos Wilson, em um bairro afluente de uma grande cidade da Flórida Central. Na parte de trás da casa, havia um deque que dava acesso a um lago onde vizinhos abastados estacionavam seus veículos aquáticos. Sobre o deque estão deitadas em suas toalhas duas adolescentes brasileiras de 17 anos, preocupadas em bronzear as marcas de maiô dos ombros para estrear vestidos tomara-que-caia em uma festa próxima. Calor, suor, biquínis diminutos, o frescor da juventude, o perigo da ingenuidade. Esse não é o início de um roteiro de true crime soft porn, eu prometo.
De longe, se aproxima um rapaz de idade universitária montado em um jet ski. Ele mesmo não aparenta ter intenção alguma além de um momento de lazer naquela tarde. Já as adolescentes, assanhadas, se levantam de suas toalhas e acenam para ele.
— Hey! C’m’ere!
O rapaz encosta a moto aquática no deque para ouvir o que as duas queriam.
— Leva a gente pra dar uma volta? — Pediram as meninas, fazendo suas melhores entonações de Ashleys e Jessicas.
Ele concordou. Pelos próximos minutos, uma por vez, este completo desconhecido carregou uma menina menor de idade sem um pingo de juízo agarrada a seu lombo, em trajes sumários.
Os anjos da guarda de todos os envolvidos fizeram hora extra esse dia.
Rotatória sem fim
Foi muito rápido: estava dirigindo na avenida Tiradentes, indo em direção ao Campo de Marte. Ia pegar a rotatória inteira para voltar pela outra pista. Entrei na rotatória e, quando saí, não sabia dizer onde estava. Era como se eu tivesse tido um apagão de nem um segundo de duração, e jogada no meio dos carros na volta. Com o trânsito ao redor, me restou seguir em frente e estacionar em uma rua mais calma, para então abrir o mapa e me situar.
Eu tinha feito uma volta e um quarto a mais da rotatória, só. Mas não lembrar a trajetória me deixou maluca por dias, achando que tinha caído numa fenda do espaço-tempo sem nem saber dizer o que é uma fenda do espaço-tempo.
O curioso é que eu não me dou muito com isso de literatura fantástica, ficção científica, essas coisas que não existem. Sabe quando você tem um déjà-vu e uma pessoa brota do chão [imagina aqui um designer de cavanhaque e bolsa-carteiro vindo direto de 2001] pra te falar que foi uma falha na Matrix? Eu não entendi Matrix, eu não sei o que é isso. Céticos diriam que foi só uma distração, mas eu sei como me senti, aquilo não foi de Deus.
O contexto da história está aqui.
Adeus, brinco
Caminhava pelo corredor de casa com um par de brincos em uma mão. Fiz um movimento com o braço que os lançou para dentro de uma saleta acarpetada, onde bateram em um móvel embutido no chão e ricochetearam para o infinito. Levantei todos os objetos que podia levantar, arrastei obstáculos do meu caminho e olhei com atenção caso o carpete tentasse me enganar a vista. Nunca mais encontrei os brincos. Nunca mais encontrei a porra desses brincos. Sério, onde foram parar esses brincos?