O incel primevo, a massa madre do celibato involuntário
Pra quem já pagou caro pra ver o Cirque du Soleil, ouvir um disco que envelheceu mal é fichinha.
Eu digo que esta newsletter sai quando dá, e às vezes a gente tá com tempo e disposição pra fazer isso duas vezes (ou mais) em um mês. Vem aí uma newsletter quinzenal? Calma, eu ainda não disse isso.
Queria falar de música, em especial de dois artistas que passaram pelos meus pensamentos nas últimas semanas, Tracy Chapman e Weezer. Acontece bastante: você acha que é uma boa ideia reescutar um disco de antigamente e nota que ele envelheceu feito leite fora da geladeira. Você pensa “meu deus, como pude?” e aí se lembra que a vida, poxa, a vida é uma série de erros que a gente comete, como pagar pra ver o Cirque du Soleil, jantar em hamburgueria com placa da Rota 66 na parede, ou usar tênis de salto nos corredores de algum evento de moda — desses eu só fiz o segundo. E tem músicas que não envelhecem, pois seguem te transportando pelos mesmos caminhos no tempo da vida. Vou começar por este exemplo.
Na cerimônia dos Grammy Awards, Tracy Chapman reapareceu após décadas para entoar Fast Car ao lado do cantor country Luke Combs. Apresentação maravilhosa, uma satisfação rever a cantora que parece ter moradia naquilo que me compõe. Se você não teve a oportunidade de assistir, a hora é agora:
A música de Chapman me traz a sensação de água fresca no corpo, manhã ensolarada na piscina em período letivo, a urgência de me vestir porque alguém está vindo me buscar no clube, a crocância da coxinha da cantina, as noites quentes assistindo Bebê a Bordo na televisão. Não só Fast Car, mas Baby Can I Hold You também faz parte dessa mesma época dos meus sete anos.
Tempos mais tarde, a mesma música foi o ponto de conexão entre uma amiga e eu. Um dia, as duas namoradas de dois amigos ouviram essa música no carro e desataram a cantar se entreolhando, admiradas com aquele momento. Carol e eu nos conhecemos nos ensaios da banda de nossos respectivos, e compartilhávamos nossas aflições de namorar músicos desempregados quando desenvolvemos uma amizade. Passamos a ter nossos próprios progamas, passeios, caronas e um cd que virou “o nosso”: o de Tracy Chapman. Fast Car teve sua letra destrinchada em noites pré-shows aquecidas no meu apartamento, cantando em uníssono, tendo a impressão que a agonia que nos uniu inicialmente não existia mais. Eu e Carol, Carol e eu, infelizes em nossos relacionamentos, construindo uma conexão que o tempo não diminuiu. Ainda nos falamos, bem pouco, mas a memória da passagem dela na minha vida segue radiante como nossos rostos ao cantar.
A outra música é um álbum, e, curiosamente, já falei dele em um outro blog, há 10 anos. Hoje, minha percepção sobre Pinkerton, do Weezer, é bem mais problemática.
Existem coisas na minha vida que batem de uma forma e tomam outra, completamente contrária, após um período breve de reflexão. Ou talvez atenção total. Voltando à época do namorado músico, lembro de um amigo muito mala dele me falar que Under My Thumb era uma música extremamente machista. Repassei rapidamente a letra na minha cabeça e discordei. Na verdade é feminista, disse, sem perceber que minha birra estava à mostra. Ainda justifiquei como se a música dissesse “under HER thumb”. Normal, absolutamente normal. Não me retratei pro cara, mas reconheci que não havia dado mais que duas sinapses pro assunto.
Talvez seja essa reação impensada que me tenha feito analisar Pinkerton no passado como um disco somente tonto. Porém, ouvindo hoje e pensando com calma, ele é basicamente a massa madre do comportamento do celibatário involuntário: as letras que só falam de sexo, a degradação da mulher como justificativa para questões individuais, o desrespeito a idades, orientações, desinteresses; teses e mais teses sobre o comportamento egoísta do dito Nice Guy.
Enquanto escrevia este texto e fazia minha apuração, fui encontrando comprovações do meu sentimento, como, por exemplo, a análise de Tired of Sex por usuários do Genius. O Rivers Cuomo foi, de fato, celibatário por dois anos enquanto estudava em Harvard. More like Rivers No-Cuomo, amirite? O cara achava, inclusive, louvável não levar fãs pra cama, até que decidiu passar pro lado oposto: convidava na caruda as moças pra fazer orgia no quarto de hotel. Diz que era o maior espalha-roda, mas sempre tinha umas três ou quatro interessadas.
O próprio Cuomo reconheceu, ao lançamento do disco, que as canções de Pinkerton eram bastante questionáveis, mas deu a desculpa de estar numa fase obscura demais:
Embora o disco tenha sido elevado ao posto de cult, ele segue sendo uma pedra no sapato do vocalista, como conta a matéria acima. É bom que seja mesmo, digo com as mãos sobre as cadeiras.
Por não conhecer a história pregressa, ouvir esse disco depois de muito aprendizado feminista ainda é quase um insulto. É tipo rir de quando seu tio velho faz piada racista só pra não criar clima: não rola mais.
Aproveitado o ensejo da edição inesperada, gostaria de fazer um convite aos leitores da cidade de São Paulo: no dia 12/03, a partir das 19h, estarei na Livraria da Vila fazendo uma noite de autógrafos do meu livro, “Até contentar o coração”. Vou adorar que vocês apareçam! Mais informações no convite abaixo:
É isso, pessoal Até a próxima!
Eu gosto de como o Substack me faz cair de paraquedas em ótimos textos. Além do tema super pertinente, adorei a escrita leve, e os toques de humor. Gargalhei com o am I Right?! Dps da piadoca.